segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Adeus, vovó

Na última vez em que nos vimos em Palmital, ela fez um pedido inusitado: quero ir com você para Brasília. Para passear lá, ver as luzes. Não seria possível por inconveniências minhas. Não teria com quem deixá-la em casa e eu, para variar, tinha muitas coisas para fazer. Era um sábado à noitinha e tínhamos indo, Maristela e eu, meio tarde, porque "tinha muitas coisas para fazer". E quem passaria a noite com ela? Onde? E o dia seguinte, o preparo do mingau, a troca das fraldas (que a deixava constrangida quando feitas por um homem)? Pensei nos inconvenientes, no custo-benefício e, como a uma criança pequena, prometi que voltaria na semana seguinte e aí, sim, passearíamos. Não subi a Palmital para comprar o leite. Era tarde. Pedi ao filho da Rogéria para comprar. Voltei noite escura, feliz por ter tido aqueles momentos radiosos com ela. Muito carinho, muita emoção. Nossos últimos encontros tinham sido recheados de boas conversas, abraços e beijos. Sempre eu tinha a impressão de que era o último encontro. Fiquei pesaroso por força de minhas "inconveniências" e de tanta coisa a ser feita. O sentimento nublado foi substituído pela leveza de nosso contato. Sempre muito afeto, lágrimas e risos. As boas lembranças do aniversário de cem anos dela, de nossa dança, de seu sorriso ao abrir os presentes, ao rever um rosto conhecido, ou um desconhecido... suas expressões educadas: muito obrigada, eu também te amo... Sempre com uma classe única, a dela. De onde vinha tanta fineza?
Ela se queixou de que estava sendo maltratada pelas crianças da Rogéria. Que puxavam seus cabelos, que jogavam água no seu rosto... chamei a a atenção das crianças, falei com a mãe. Saí me sentindo um covarde. Por que não a tirei logo dali?
Lembrei-me do seu desconforto com o calor de Brasília, as horas que não podíamos dedicar a ela, em função dos afazeres do cotidiano, da troca das cuidadoras frias... e pensei melhor. Nada é perfeito.
Despedi-me com a promessa de que voltaria na semana seguinte. Márcia o fez, para alívio meu, pois sabia de seu carinho com vovó e de sua firmeza. Disse que vovó estava bem e não manifestou desejo de vir a Brasília.
Ficamos lembrando da leitura da carta da Alinne para a vovó. Ela respondia com os olhos vivos... eu também.. .obrigada... eu te amo também... E eu deixei as lágrimas correr ao perceber o afeto das duas. Do genuíno afeto corroborado pelas trocas de carinho com os olhares úmidos. Maristela
fotografou e filmou tudo. No seu papel de registradora oficial, que ela assumiu recentemente, mandou cópia para os irmãos e para a sobrinha. Ficamos envolvidos neste clima.
Até que.. .veio a notícia. Ela tinha se sentindo mal e viria de ambulância a Brasília, com destino ao HRAN. Conseguimos interceptar o veículo e pedimos que ela fosse para o Paranoá, onde o Anderson a esperaria. Não poderia ter sido melhor o acolhimento. Nada melhor que a firmeza e o carinho do Anderson naquele instante. Vovó se sentiu confiante ao nos ver juntos, os três. Ela não ficava nenhum momento sozinha no trato com seu AVC, na sua crise hipertensiva.
Não sentiu dor, ou não demonstrava. Insistia em ficar sentada, mas não conseguia. Pendia para o lado esquerdo, a língua estava enrolada. E continuava falando. Expressava seu desconforto com a posição. Sentia calor e fazia movimentos para se sentar. E eu, às vezes, a obedecia. Outras vezes, não. Ela engasgou algumas vezes e vomitou. Parecia sangue. Ficamos preocupados e chamamos o clínico de plantão. Ele atribuiu a crise à falta de eletrólitos, como o fizera o plantonista do Santa Lúcia. Pensamos tantas coisas.. .que ela estava subnutrida, que não tomava água, etc... Pensamos tantas coisas...
E não adiantava pensar. Adiantava ficar com ela, fazer carinho, observar sua preocupação em "estar bem composta", com o vestido cobrindo suas partes íntimas, que não se mantêm tão íntimas assim, quando ficamos expostos aos cuidados de terceiros... sua preocupação com os cabelos, que não podiam estar desalinhados...
Quando voltamos do Santa Lúcia, ela estava mais debilitada ainda. Foi pedido soro, Plasil, Buscopan? ela vomitava. Demoraram a administrar a medicação. Isto só ocorreu às sete horas.
Ela pegava a minha mão o tempo todo e apontava para o teto: "luz... luz..." E tinha uma cara que parecia ser de achar engraçado. Eu não entendia nada. Perguntei se era para desligar a luz. Ela recusava. A lâmpada estava desligada. E sorria. Márcia me disse que ela viu luzes. Deve ter sido luzes bem coloridas, bonitas. As luzes que ela tanto admirava nos seus passeios em Brasília? as luzes de sua Palmital, como no passeio que Márcia também fez com ela em sua última visita?
Ou seriam outras luzes? Luzes de outro plano que a esperavam? A projeção de seu carinho, de sua dedicação, persistência, disciplina, lucidez, determinação, dignidade, alegria, desejo de viver?
Em seguida, após a tentativa da punção da artéria femural, vovó dormiu.
Ficamos o tempo todo com ela, Márcia e eu. Quando um saía, o outro voltava. Só a deixamos quando a equipe médica interveio para o "socorro".
Recebi a notícia da morte cerebral em seguida. Tentaram reanimá-la. Prosseguiremos com o esforço para reanimá-la? A mandamos para a UTI? Nem pensar.
Sua temperatura foi baixando... o calor da vida ao frio da despedida. Conosco. Do jeito sonhado, esperado. Como alguém que se foi. E nos deixou sua luz. Obrigado, vovó.