terça-feira, 8 de março de 2011

a tal da eficácia simbólica

A tal da eficácia simbólica, expressão cunhada por Claude Lévy-Strauss, é, em outras palavras, a propriedade que os rituais têm de forjar transformações nos corpos e nas mentes dos fiéis. Os rituais pretendem uma eficácia, ou seja, têm que mostrar resultados concretos. Para que ela ocorra, é preciso que todos acreditem, tenham fé: a comunidade, os praticantes e os beneficiários das práticas.
Vou falar do filme "Les Maîtres Fous", de Jean Rauche (1955). Trata-se de um documentário rodado no Ghana, em que é apresentado um ritual religioso dos Haoukas, uma seita que se espalhou na África Ocidental na primeira metade do século XX. Depois eu continuo...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Adeus, vovó

Na última vez em que nos vimos em Palmital, ela fez um pedido inusitado: quero ir com você para Brasília. Para passear lá, ver as luzes. Não seria possível por inconveniências minhas. Não teria com quem deixá-la em casa e eu, para variar, tinha muitas coisas para fazer. Era um sábado à noitinha e tínhamos indo, Maristela e eu, meio tarde, porque "tinha muitas coisas para fazer". E quem passaria a noite com ela? Onde? E o dia seguinte, o preparo do mingau, a troca das fraldas (que a deixava constrangida quando feitas por um homem)? Pensei nos inconvenientes, no custo-benefício e, como a uma criança pequena, prometi que voltaria na semana seguinte e aí, sim, passearíamos. Não subi a Palmital para comprar o leite. Era tarde. Pedi ao filho da Rogéria para comprar. Voltei noite escura, feliz por ter tido aqueles momentos radiosos com ela. Muito carinho, muita emoção. Nossos últimos encontros tinham sido recheados de boas conversas, abraços e beijos. Sempre eu tinha a impressão de que era o último encontro. Fiquei pesaroso por força de minhas "inconveniências" e de tanta coisa a ser feita. O sentimento nublado foi substituído pela leveza de nosso contato. Sempre muito afeto, lágrimas e risos. As boas lembranças do aniversário de cem anos dela, de nossa dança, de seu sorriso ao abrir os presentes, ao rever um rosto conhecido, ou um desconhecido... suas expressões educadas: muito obrigada, eu também te amo... Sempre com uma classe única, a dela. De onde vinha tanta fineza?
Ela se queixou de que estava sendo maltratada pelas crianças da Rogéria. Que puxavam seus cabelos, que jogavam água no seu rosto... chamei a a atenção das crianças, falei com a mãe. Saí me sentindo um covarde. Por que não a tirei logo dali?
Lembrei-me do seu desconforto com o calor de Brasília, as horas que não podíamos dedicar a ela, em função dos afazeres do cotidiano, da troca das cuidadoras frias... e pensei melhor. Nada é perfeito.
Despedi-me com a promessa de que voltaria na semana seguinte. Márcia o fez, para alívio meu, pois sabia de seu carinho com vovó e de sua firmeza. Disse que vovó estava bem e não manifestou desejo de vir a Brasília.
Ficamos lembrando da leitura da carta da Alinne para a vovó. Ela respondia com os olhos vivos... eu também.. .obrigada... eu te amo também... E eu deixei as lágrimas correr ao perceber o afeto das duas. Do genuíno afeto corroborado pelas trocas de carinho com os olhares úmidos. Maristela
fotografou e filmou tudo. No seu papel de registradora oficial, que ela assumiu recentemente, mandou cópia para os irmãos e para a sobrinha. Ficamos envolvidos neste clima.
Até que.. .veio a notícia. Ela tinha se sentindo mal e viria de ambulância a Brasília, com destino ao HRAN. Conseguimos interceptar o veículo e pedimos que ela fosse para o Paranoá, onde o Anderson a esperaria. Não poderia ter sido melhor o acolhimento. Nada melhor que a firmeza e o carinho do Anderson naquele instante. Vovó se sentiu confiante ao nos ver juntos, os três. Ela não ficava nenhum momento sozinha no trato com seu AVC, na sua crise hipertensiva.
Não sentiu dor, ou não demonstrava. Insistia em ficar sentada, mas não conseguia. Pendia para o lado esquerdo, a língua estava enrolada. E continuava falando. Expressava seu desconforto com a posição. Sentia calor e fazia movimentos para se sentar. E eu, às vezes, a obedecia. Outras vezes, não. Ela engasgou algumas vezes e vomitou. Parecia sangue. Ficamos preocupados e chamamos o clínico de plantão. Ele atribuiu a crise à falta de eletrólitos, como o fizera o plantonista do Santa Lúcia. Pensamos tantas coisas.. .que ela estava subnutrida, que não tomava água, etc... Pensamos tantas coisas...
E não adiantava pensar. Adiantava ficar com ela, fazer carinho, observar sua preocupação em "estar bem composta", com o vestido cobrindo suas partes íntimas, que não se mantêm tão íntimas assim, quando ficamos expostos aos cuidados de terceiros... sua preocupação com os cabelos, que não podiam estar desalinhados...
Quando voltamos do Santa Lúcia, ela estava mais debilitada ainda. Foi pedido soro, Plasil, Buscopan? ela vomitava. Demoraram a administrar a medicação. Isto só ocorreu às sete horas.
Ela pegava a minha mão o tempo todo e apontava para o teto: "luz... luz..." E tinha uma cara que parecia ser de achar engraçado. Eu não entendia nada. Perguntei se era para desligar a luz. Ela recusava. A lâmpada estava desligada. E sorria. Márcia me disse que ela viu luzes. Deve ter sido luzes bem coloridas, bonitas. As luzes que ela tanto admirava nos seus passeios em Brasília? as luzes de sua Palmital, como no passeio que Márcia também fez com ela em sua última visita?
Ou seriam outras luzes? Luzes de outro plano que a esperavam? A projeção de seu carinho, de sua dedicação, persistência, disciplina, lucidez, determinação, dignidade, alegria, desejo de viver?
Em seguida, após a tentativa da punção da artéria femural, vovó dormiu.
Ficamos o tempo todo com ela, Márcia e eu. Quando um saía, o outro voltava. Só a deixamos quando a equipe médica interveio para o "socorro".
Recebi a notícia da morte cerebral em seguida. Tentaram reanimá-la. Prosseguiremos com o esforço para reanimá-la? A mandamos para a UTI? Nem pensar.
Sua temperatura foi baixando... o calor da vida ao frio da despedida. Conosco. Do jeito sonhado, esperado. Como alguém que se foi. E nos deixou sua luz. Obrigado, vovó.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Rotina

Um dia novo começava e ela carregava na mochila os restos da noite e do dia anteriores. O horário de verão era impeditivo para a sensação de alvorecer. Sete horas era quase noite ainda e os pássaros e os cachorrinhos da vizinhança pareciam também não aderir às regulamentações oficiais.

Um turbilhão de pensamentos negativos maculavam a consciência que deveria estar tabulamente rasa nesta hora do dia. Era a mãe com sua encheção de saco, as pendências do trabalho, as pressões das tarefas que se seguiriam.

aconchego, tranquilidade, conforto, paz, crescimento espiritual, desejo de mudança, novidades, amizade, companheirismo, calor, diminuir barriga. exercícios, frescor, renovação.

Nada como uma boa corridinha para parir o parágrafo anterior.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Deixando Belfast

Malas prontas, quarto arrumado. ¬As nove horas devo sair de casa. A casinha aconhegante, como de brinquedo, um pouco fria. D'a vontade de ficar horas na sala, curtindo a lareira e ouvindo a filha contar as desaventuras do Candido com sua Cunegundes, entremeando com alguns cochilos e despertares assustados.
Ainda bem que a pasta de tamarindo nao fez tanto efeito assim, porque iria me complicar com tantos traslados possiveis.
La vamos nos. Nao quis bater na porta da sala, porque o casal estava la. Deviam estar dormindo muito romanticamente naquele ambiente aquecido, tendo o branco na rua, sobre os carros, sobre as 'arvores. Nossa Snowland. Assim estava Belfast exatamente como descreveu James Joyce no conto "Os Mortos". Belfast e toda a Irlanda, como pude constatar depois na viagem de tres horas no Eirean Bus at'e Dublin.
A filha acordou apressada. Ah, papai, meu despertador nao tocou.
Tudo bem, filhona. Vou sair sem seu caf'e. Mas fui presenteado com uma matula de lanches de viagem. Confesso que relutei. Nao queria passar por caipira carregando tanta comida. Banana estraga e d'a mau h'alito. Os biscoitos eram ardidos. Cheios de gengibre. E a barra de cereais? alimenta, mas 'e chato. Nada mais providencial para quem iria gastar tanto tempo num onibus e num aeroporto superlotado.
Obrigado, filhona. Valeu.
Valeram as l'agrimas que a custo eu tentei segurar. At'e que as suas contagiaram as minhas naquela estacao gelada.
Vi voces dois deixarem a estacao antes do onibus partir. Gosto dessa melancolica e reconfortante cena. Melhor assim.
Fui bravo e entrei no onibus. Preferi nao ficar pensando que iria deixa-los e segui em frente.
Fui surpreendido pela nevasca. O onibus se arrastava e parava em diversos pontos. Parecia uma van. Ainda bem que o motorista foi sincero comigo. Eu perguntei se o onibus iria direto para o aeroporto de Dublin e ele disse que nao. So que eu nao queria saber disso. Queria saber se ele iria mesmo para Dublin.
A viagem nao foi tao penosa porque me diverti com os joguinhos no celular, com a matula e com uma curiosidade ou outra que eu descobria na paisagem monotona. Descobri que a neve 'e cinza e preta ao cair e fica branca depois. Ou seria so minha neve? Os oculos estavam embacados e as janelas sujas de lama. Os passageiros, como as gentes do hemisferio norte, andam sisudas e nao falam nada. A etiqueta parece nao exigir que se peca licenca ao se sentar ao lado, nem mesmo dizer bom-dia.
Bem que tentei cumprimentar alguem, mas nao fui correspondido. Bem feito pra mim. Da proxima vez, insistirei, como faco sempre em Brasilia.
Amarguei uma hora e meia na fila da BMI, ate receber os cumprimentos mais amaveis e as explicacoes mais inocuas acerca de meu voo. A atendente ainda teve a coragem de me perguntar sobre o que me deixaria mais feliz. Nao quis perder tempo com as minhas respostas divertidas de sempre porque havia um mundo de gente atr'as de mim. Nao tao nervosos como os brasileiros ficam nessas situacoes, mas algo tensos. Presenciei apenas um discutindo com um funcionario da BMI, que respondeu, como sempre, que a culpa nao era dele nem da empresa, e sim de Sao Pedro. Nada mais coerente em um pa'iscat'olico.
Tentei contato com o Visa Infinite e o Dinersclub. Nada feito. A parte que me irritou mais foi o do Visa, que tinha o telefone impresso errado em meu cartao. Gastei uma chamada a toa para o Brasil. Queria acionar o seguro-viagem.
Liguei para alguns hoteis e fiquei assustado com os valores das diarias. Parece que estao fazendo a maior farra com o cancelamento dos voos para Londres. Optei pelo Marriott. Amarguei quarenta minutos no frio, esperando o motorista polones que me conduziu marcialmente ate o hotel. Achei que ele nao viria mais. So ao chegar no meu destino luxuoso 'e que me dei conta da distancia ate o aeroporto.
A diaria ate que nao foi m'a, levando em conta a academia, a piscina, a sauna, os restaurantes, as instalacoes, ufa! estou em ferias.
E nao estou certo se amanha voltarei ao Brasil. Ou melhor. A Londres. A Lisboa. Ao Rio de Janeiro. a Brasilia.
Um conselho eu vendo: Na proxima vez que quiser ver seus filhos reunidos, melhor pagar uma passagem para o verao no Brasil do que hibernar no hemisferio norte em dezembro.
Mas esta sendo divertido, e isto 'e que conta.
Estou me sentindo so, e a Internet me ajuda.
O que acontecera quando os chineses lotarem o mundo, os aeroportos, os hoteis? Cuidado. Os chineses estao vindo!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Fotografia de um deja-vu (sem acento)

A fotografia do pátio mostrava luzes coloridas cortadas por flocos de neve. Displicentes.
Aos olhos, somente neblina e luzes tímidas. Abóbora, verdes, azuis, amarelas. Ora, ora...
Saudade e tristeza. Saudade será sempre triste? As ruas tinham um que (com acento) familiar. Naquela zona a (tem crase) noite com passos firmes indo nao-sei-pra-onde-encontrar-nao-sei-quem.
Os taxis pretos, antigas testemunhas de uma era violenta, tambem estavam a espreita, conspirando contra a memoria. Frankenstein, Sherlock Holmes. Malditos autores e diretores. Atores favoritos polvilhando na densidade de lembrancas de outros personagens.
Apropriacao de Oscar Wilde, Mr Hide, Dr Jeckyl, Robert Louis Stevenson, Daniel Defoe, os escoceses, os irlandeses, os britanicos todos. Conspiradores, fazedores de mente, adensadores.
Nenhuma reencarnacao e possivel. É proibido chorar por vidas passadas?
Nao ha uma so vida. Nao ha mais que uma vida.
Despedida sem pensar ter existido aqui. Todo lugar é sempre assim. Relutancia em sair de lá. Receio de chegar, titubear, resistencia de partir.
Partir tem um jeito triste. Criacao de raizes. Adensamento.
Os rostos, as roupas, os corpos, os olhares, os cheiros, as conversas cortadas, as sobras, os flashes, o frio. Novas historias que se incorporam as antigas, gerando fatos ou mentiras contadas a rodo. Ou novas verdades se reinventando.
A velhice e o cansaco de revisar lembrancas em cinco dimensoes.
O diabo e que as interrogacoes e os entre-parentesis estao denunciando a inseguranca e as incertezas.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Good-bye is all we have.

Good-bye is all you have. Good-bye. Bom modo de iniciar uma comunicacao. Sem cedilhas ou acentos, porque encontro-me em Belfast, e, embora esteja ao computador da filha minha, é terra estrangeira, e muita coisa aqui parece diferente.
Parece estranha demais. Nao sei onde estou. Se no Reino Unido... por que sao irlandeses? se na Irlanda... por que sao tao ingleses? E há uma estranha divisao de bairros aqui. Uns protestantes, outros catolicos. Parece a mesma que vejo no Brasil. Uns neo-pentecostais, uns-nada. Uns ricos, uns pobres. Uns que insistem em ser coisa que nao sao. Outros que tem medo de deixar de ser o que estao.
Os carros rodam a inglesa. Fico tonto. Para onde olho? A direita? náo. agora deves olhar para a esquerda. E o cruzamento é em x.
Na minha terra, tenho que olhar para todos os lados. Corro o risco de ser assaltado.
Os precos sao otimos. Nem parece que estou na Europa. Comprei oito camisas, iguaizinhas aquelas que uso no dia-a-dia, aquelas das quais quero me livrar com urgencia daqui a tres ou cinco anos, quando me aposentar. Por apenas o equivalente a quinze reais cada. Sera o suficiente para me safar dos shoppings brasilienses por um ano. Estou na feira do Paraguai inglesa
Eu me alimento bem. Pago menos de quinze reais por uma comida que, na minha terra, pareceria requintada. Sem suspeitas de saliva esvoacante. Estranha terra onde as pessoas elegantes transitam entre as pessoas elegantes sem parecerem querer ser elegantes.
Ha uma indiferenca total ao que lhes cerca. Aos murals, as pichacoes, aos taxis de cor difererente que circulam so no bairro catolico. A historia. Como seria se se sensibilizassem? ssss... Como seria se nos sensibilizassemos com nossa realidade social? ssss...
O frio nao foi tanto quanto esperado. Os jornais ingleses e do resto do mundo falam do sofrimento dos britanicos neste inverno cheio de neve. Tambem estampam as imagens das tragedias das chuvas brasileiras, com suas dezenas de mortos. Como todos os anos.
Estou longe e estou perto. Olho para o diferente e comparo com o rotineiro. Estou aqui e estou sempre aqui. Viajo para aeroportos distantes, para imigracoes parecidas. O mundo tenta me colocar no lugar em que estou. No terceiro mundo. E a historia com aga maiusculo. Melhor pensar diferente. Nao sou eu. Sao as condicoes do mundo de hoje, com seus terroristas islamicos, com sua alcaeda, com seus malucos. Sao os imigrantes morenos, que nao falam ingles, forcando a barra para uma vida melhor. Para mandar dinheiro para o Brasil. Como os irlandeses faziam anos atras, fugindo da falta de batata, do frio, das fronteiras fechadas, do curral, dos sub-empregos, dos outros bebedores de chá, com seus sotaques, chegando a portos diferentes, a outras imigracoes.
Nao sou eu. Nao somos nos. Sao sempre eles, os que ameacam, que impoem barreiras, os estranhos, que nos olham como estranhos.
Todos sao estranhos e buscam semelhancas, ~cobija~, como diria em espanhol. Buscamos um lar onde estamos. Aconchego num mundo muito frio, nevado, com lobos uivando ao longe. Aconchego para nao lembrar que somos ovelhas tentando ficar proximas para fugir da fome, do frio e do predador.
Sou forcado a publicar por livre e espontanea pressao. Ou por pura tentacao.