sábado, 9 de janeiro de 2010

Deixando Belfast

Malas prontas, quarto arrumado. ¬As nove horas devo sair de casa. A casinha aconhegante, como de brinquedo, um pouco fria. D'a vontade de ficar horas na sala, curtindo a lareira e ouvindo a filha contar as desaventuras do Candido com sua Cunegundes, entremeando com alguns cochilos e despertares assustados.
Ainda bem que a pasta de tamarindo nao fez tanto efeito assim, porque iria me complicar com tantos traslados possiveis.
La vamos nos. Nao quis bater na porta da sala, porque o casal estava la. Deviam estar dormindo muito romanticamente naquele ambiente aquecido, tendo o branco na rua, sobre os carros, sobre as 'arvores. Nossa Snowland. Assim estava Belfast exatamente como descreveu James Joyce no conto "Os Mortos". Belfast e toda a Irlanda, como pude constatar depois na viagem de tres horas no Eirean Bus at'e Dublin.
A filha acordou apressada. Ah, papai, meu despertador nao tocou.
Tudo bem, filhona. Vou sair sem seu caf'e. Mas fui presenteado com uma matula de lanches de viagem. Confesso que relutei. Nao queria passar por caipira carregando tanta comida. Banana estraga e d'a mau h'alito. Os biscoitos eram ardidos. Cheios de gengibre. E a barra de cereais? alimenta, mas 'e chato. Nada mais providencial para quem iria gastar tanto tempo num onibus e num aeroporto superlotado.
Obrigado, filhona. Valeu.
Valeram as l'agrimas que a custo eu tentei segurar. At'e que as suas contagiaram as minhas naquela estacao gelada.
Vi voces dois deixarem a estacao antes do onibus partir. Gosto dessa melancolica e reconfortante cena. Melhor assim.
Fui bravo e entrei no onibus. Preferi nao ficar pensando que iria deixa-los e segui em frente.
Fui surpreendido pela nevasca. O onibus se arrastava e parava em diversos pontos. Parecia uma van. Ainda bem que o motorista foi sincero comigo. Eu perguntei se o onibus iria direto para o aeroporto de Dublin e ele disse que nao. So que eu nao queria saber disso. Queria saber se ele iria mesmo para Dublin.
A viagem nao foi tao penosa porque me diverti com os joguinhos no celular, com a matula e com uma curiosidade ou outra que eu descobria na paisagem monotona. Descobri que a neve 'e cinza e preta ao cair e fica branca depois. Ou seria so minha neve? Os oculos estavam embacados e as janelas sujas de lama. Os passageiros, como as gentes do hemisferio norte, andam sisudas e nao falam nada. A etiqueta parece nao exigir que se peca licenca ao se sentar ao lado, nem mesmo dizer bom-dia.
Bem que tentei cumprimentar alguem, mas nao fui correspondido. Bem feito pra mim. Da proxima vez, insistirei, como faco sempre em Brasilia.
Amarguei uma hora e meia na fila da BMI, ate receber os cumprimentos mais amaveis e as explicacoes mais inocuas acerca de meu voo. A atendente ainda teve a coragem de me perguntar sobre o que me deixaria mais feliz. Nao quis perder tempo com as minhas respostas divertidas de sempre porque havia um mundo de gente atr'as de mim. Nao tao nervosos como os brasileiros ficam nessas situacoes, mas algo tensos. Presenciei apenas um discutindo com um funcionario da BMI, que respondeu, como sempre, que a culpa nao era dele nem da empresa, e sim de Sao Pedro. Nada mais coerente em um pa'iscat'olico.
Tentei contato com o Visa Infinite e o Dinersclub. Nada feito. A parte que me irritou mais foi o do Visa, que tinha o telefone impresso errado em meu cartao. Gastei uma chamada a toa para o Brasil. Queria acionar o seguro-viagem.
Liguei para alguns hoteis e fiquei assustado com os valores das diarias. Parece que estao fazendo a maior farra com o cancelamento dos voos para Londres. Optei pelo Marriott. Amarguei quarenta minutos no frio, esperando o motorista polones que me conduziu marcialmente ate o hotel. Achei que ele nao viria mais. So ao chegar no meu destino luxuoso 'e que me dei conta da distancia ate o aeroporto.
A diaria ate que nao foi m'a, levando em conta a academia, a piscina, a sauna, os restaurantes, as instalacoes, ufa! estou em ferias.
E nao estou certo se amanha voltarei ao Brasil. Ou melhor. A Londres. A Lisboa. Ao Rio de Janeiro. a Brasilia.
Um conselho eu vendo: Na proxima vez que quiser ver seus filhos reunidos, melhor pagar uma passagem para o verao no Brasil do que hibernar no hemisferio norte em dezembro.
Mas esta sendo divertido, e isto 'e que conta.
Estou me sentindo so, e a Internet me ajuda.
O que acontecera quando os chineses lotarem o mundo, os aeroportos, os hoteis? Cuidado. Os chineses estao vindo!

Um comentário:

  1. Mas a filha queria tanto que o pai tivesse batido à porta e a chamado para preparar um café. A bateria do telefone acabou, como acaba sempre nos dias mais impróprios. Assim como o mingau, os jantares e os lanches de todos os outros dias, que com tanto prazer a filha preparava, ela gostaria de ter passado o último café. O café da despedida. Talvez tenha sido melhor assim, talvez Pangloss esteja certo. Mas a Falta veio certeira como um martelo, que de uma só vez enterra o prego num velho pedaço de madeira. Não o deixa torto, não precisa de mais uma batidinha: enterra-o por certo, finca-o num coração apertado.

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